Direitos fundamentais

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Luigi Ferrajoli**


1 – UMA DEFINIÇÃO FORMAL DO CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

      Proponho uma definição teórica, puramente formal ou estrutural, de “direitos fundamentais”: são “direitos fundamentais” todos aqueles direitos subjetivos que dizem respeito universalmente a “todos” os seres humanos enquanto dotados do status de pessoa, ou de cidadão ou de pessoa capaz de agir. Compreendo por “direito subjetivo” qualquer expectativa positiva (a prestação) ou negativa (a não-lesão) vinculada a um sujeito por uma norma jurídica, e por “status” a condição de um sujeito prevista também esta por uma norma jurídica positiva qual pressuposto da sua idoneidade a ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que estão em exercício1.

      Essa definição é uma definição teórica enquanto, também sendo estipulada com referência aos direitos fundamentais positivamente determinados pelas leis e constituições nas modernas democracias, prescinde da circunstância de fato de que nesse ou naquele ordenamento tais direitos sejam ou não sejam formulados em cartas constitucionais ou em leis fundamentais e, por assim dizer, do fato de que eles sejam (ou não sejam) enunciados em normas de direito positivo. Não se trata, em outras palavras, de uma definição dogmática2, isto é, formulada com referência às normas de um ordenamento concreto, como, por exemplo, a constituição italiana ou aquela espanhola. Com base nisso, diremos que são “fundamentais” os direitos atribuídos por um ordenamento jurídico a todas as pessoas físicas enquanto tais, ou enquanto cidadãs, ou enquanto capazes de agir. Mas diremos também, sem que a nossa definição seja de algum modo invalidada, que um dado ordenamento jurídico, por exemplo, totalitário é privado de direitos fundamentais. A previsão de tais direitos por parte do direito positivo de um determinado ordenamento é, de alguma maneira, condição da sua existência ou vigor naquele ordenamento, mas não incide sobre o significado do conceito de direitos fundamentais. Menos ainda incide sobre esse significado a sua previsão num texto constitucional, que é somente uma garantia de sua observância por parte do legislador ordinário: são fundamentais, por exemplo, também os direitos de defesa determinados ao imputado pelo código de processo penal, que é uma lei ordinária.

      Em segundo lugar, a nossa definição é uma definição formal ou estrutural no sentido de que prescinde da natureza dos interesses e das necessidades tuteladas com o seu reconhecimento como direitos fundamentais, e se baseia unicamente sobre o caráter universal da sua imputação: compreendido “universal” no sentido puramente lógico e avalorativo da qualificação universal da classe de sujeitos que deles são titulares. De fato, são tutelados como universais, e, portanto, fundamentais, a liberdade pessoal, a liberdade de pensamento, os direitos políticos, os direitos sociais e similares. Mas onde tais direitos fossem alienáveis e então virtualmente não-universais, como seriam, por exemplo, numa sociedade escravagista ou inteiramente mercantilista, eles não seriam universais nem, por conseguinte, fundamentais. Inversamente, se fosse estabelecido como universal um direito absolutamente fútil, como, por exemplo, o direito a ser cumprimentado na via pública pelos próprios conhecidos ou o direito de fumar, ele seria um direito fundamental.

      São evidentes as vantagens de uma definição como essa. Enquanto prescinde de circunstâncias de fato, ela é valida para qualquer ordenamento, independentemente dos diretos fundamentais nele previstos ou não-previstos, inclusos os ordenamentos totalitários e aqueles pré-modernos. Há, assim, o valor de uma definição pertencente à teoria geral do direito. Enquanto é independente dos bens ou dos valores ou das necessidades substanciais que pelos direitos fundamentais são tutelados, ela é, antes de tudo, ideologicamente neutra. É por isso válida em qualquer que seja a filosofia jurídica ou política compartilhada: juspositivista ou jusnaturalista, liberal ou socialista, e, por fim, antiliberal e antidemocrática.

      E, todavia, esse caráter “formal” da nossa definição não impede que ela seja suficiente para identificar, nos direitos fundamentais, a base da igualdade jurídica. Graças a isto, de fato, a universalidade expressa pela quantificação universal dos (tipos de) sujeitos que de tais direitos são titulares vem a se configurar como um dos seus corolários estruturais, que, como veremos, comporta o caráter inalienável e indisponível dos interesses substanciais nos quais esses direitos consistem. Em verdade, na experiência histórica do constitucionalismo, tais interesses coincidem com as liberdades e com as outras necessidades de cuja garantia, conquistada a preço de lutas e revoluções, depende a vida, a sobrevivência, a igualdade e a dignidade dos seres humanos. Mas essa garantia se realiza precisamente através da forma universal que provem da sua estipulação como direitos fundamentais em normas constitucionais supra-ordenadas a qualquer poder decisório: se são normativamente de “todos” (os membros de uma dada classe de sujeitos), eles não são alienáveis ou negociáveis, mas correspondem, por assim dizer, à prerrogativa não-contingente e inalterável dos seus titulares e a outros tantos limites e vínculos insuperáveis a todos os poderes, sejam públicos ou privados.

      É claro, de outra parte, que essa universalidade, não é absoluta, mas é relativa aos argumentos com referência aos quais é predicada. O “todos” dos quais tais direitos consentem de predicar a igualdade é, de fato, logicamente relativo às classes dos sujeitos cuja sua titularidade é normativamente reconhecida. Se da quantidade e da qualidade dos interesses protegidos como direitos fundamentais depende a intenção da igualdade, é então da extensão de tais classes, ou seja, da supressão ou redução das diferenças de status das quais elas são determinadas, que depende a extensão da igualdade, e, logo, o grau de democratização em dado ordenamento.

      Essas classes de sujeitos foram identificadas, na nossa definição, pelo status determinado pela identidade de “pessoa” e/ou de “cidadão” e/ou de “capaz de agir”, que, como sabemos, foram objetos, na história, das mais variadas limitações e discriminações. “Personalidade”, “cidadania” e “capacidade de agir”, enquanto condições de titularidade de todos os (diversos tipos de) direitos fundamentais, são consequentemente os parâmetros assim da igualdade como da desigualdade en droits fundamentaux. É prova disso o fato de que os seus pressupostos podem ser – e historicamente foram – mais ou menos estendidos: restritíssimos no passado, quanto ao sexo, ao nascimento, ao censo, ou por instrução ou por nacionalidade, dos quais era excluída a maioria das pessoas físicas, eles foram progressivamente estendidos, sem, contudo, alcançar tampouco hoje, ao menos no que tange à cidadania ou à capacidade de agir, uma extensão universal a todos os seres humanos.

      Hoje a cidadania e a capacidade de agir restaram como as únicas diferenças de status que ainda delimitam a igualdade das pessoas humanas. E podem, por isso, ser assumidas como os dois parâmetros – o primeiro superável, o segundo insuperável – sobre os quais podemos fundar duas grandes divisões entre os direitos fundamentais: aquela entre direitos da personalidade e direitos de cidadania, que dizem respeito, respectivamente, a todos ou somente aos cidadãos, e aquela entre os direitos primários (ou substanciais) e os direitos secundários (ou instrumentais ou de autonomia), que dizem respeito, nessa ordem, a todos ou somente às pessoas capazes de agir. Cruzando as duas distinções, obteremos quatro classes de direitos: os direitos humanos, que são os direitos primários das pessoas, que dizem respeito indistintamente a todos os seres humanos, como, por exemplo (com base na constituição italiana), o direito à vida e à integridade da pessoa, a liberdade pessoal, a liberdade de consciência e de manifestação do pensamento, o direito à saúde e aquele à instrução; os direitos públicos, que são os direitos primários reconhecidos somente aos cidadãos, como (sempre tomando por base a constituição italiana) o direito de residência e de circulação no território nacional, os direitos de reunião e associação, o direito ao trabalho e aquele à subsistência e previdência daqueles que são inabilitados ao trabalho; os direitos civis, que são os direitos secundários destinados a todas as pessoas humanas capazes de agir, como o poder negocial, a liberdade contratual, a liberdade de escolha e de mudança de trabalho, a liberdade de empreendimento, o direito de agir em juízo e, em geral, todos os direitos potestativos nos quais se manifesta a autonomia privada e sobre os quais se funda o mercado; os direitos políticos, que são, enfim, os direitos secundários reservados somente aos cidadãos capazes de agir, como o direito de voto, o eleitorado passivo, o direito de acesso às funções públicas e, em geral, todos os direitos potestativos nos quais se manifesta a autonomia política e sobre os quais se fundam a representação e a democracia política3.

      Seja a nossa definição que a tipologia dos direitos fundamentais operada com base nela tem, todavia, um valor teórico independente dos concretos sistemas jurídicos e da experiência constitucional moderna. Qualquer que seja o ordenamento considerado, são, de fato, à sua escolha, “direitos fundamentais”– em relação aos casos humanos, públicos, civis e políticos – todos e somente aqueles que forem atribuídos universalmente às classes de sujeitos determinados pela identidade de “pessoa” ou de “cidadão” ou de “capaz de agir”. Nesse caso, ao menos no Ocidente, direitos fundamentais sempre existiram, desde o direito romano, também pela maior parte limitados a classes muito restritas de sujeitos4. Mas sempre foram essas três identidades – de pessoa, de cidadão e de capaz de agir – que forneceram, na extraordinária variedade das discriminações de sexo, de etnia, de religião, de censo, de classe, de instrução e de nacionalidade com as quais foram definidos, os parâmetros da inclusão e exclusão dos seres humanos entre os titulares dos direitos e, assim, das suas igualdades e desigualdades.

      Nesse sentido, aconteceu na antiguidade que as desigualdades se expressaram, antes de tudo, através da negação da mesma identidade de pessoa (aos escravos, concebidos como coisas), e, somente em segundo plano (com as variadas inabilitações impostas às mulheres, aos hereges, aos excluídos e aos judeus), através da negação da capacidade de agir ou da cidadania. Sucessivamente, afirmando-se o valor da pessoa humana, as desigualdades foram defendidas somente em casos excepcionais com a negação da identidade de pessoa e da capacidade jurídica – pense-se na população indígena vítima das primeiras colonizações européias e na escravidão nos Estados Unidos ainda no século XIX –, enquanto se mantiveram, sobretudo, com as restrições da capacidade de agir com base no sexo, na instrução e na renda: sujeitos optimo iure, mesmo depois de 1789, e assim ficaram por muito tempo, os sujeitos machos, brancos, adultos, cidadãos e proprietários5. Hoje, depois de a capacidade de agir ter sido estendida a todos, com exceção dos menores e dos doentes mentais, a desigualdade passa essencialmente através da estampa estatal da cidadania, cuja definição com base no pertencimento nacional e territorial representa a última grande limitação normativa do princípio da igualdade jurídica. Deste modo, o que mudou com o progresso do direito, afora as garantias oferecidas pelas codificações e constituições, não são os critérios – personalidade, capacidade de agir e cidadania – sobre cuja base são atribuídos os direitos fundamentais, mas unicamente o seu significado, anteriormente restrito e fortemente discriminatório, depois sempre mais ampliado e tendencialmente universal6.

2 – Quatro teses em tema de direitos fundamentais

      A definição de direitos fundamentais aqui proposta se funda em quatro teses, todas, a meu ver, essenciais a uma teoria da democracia constitucional.

      A primeira tese refere-se à radical diferença de estrutura entre os direitos fundamentais e os direitos patrimoniais, relacionando-se os primeiros à inteira classe de sujeitos e os segundos a qualquer de seus titulares, com exclusão de todos os outros. Essa diferença foi ocultada, na nossa tradição jurídica, pelo uso de uma única palavra – “direito subjetivo” – para designar situações subjetivas entre elas heterogêneas e sob mais aspectos opostas: direitos inclusivos e direitos exclusivos, direitos universais e direitos singulares, direitos indisponíveis e direitos disponíveis. Isso pode ser explicado com as diferentes ascendências teóricas das duas categorias de direitos: a filosofia jusnaturalista e contratualista dos séculos XVII e XVIII, no que tange aos direitos fundamentais; a tradição civilista e romanista, no que tange aos direitos patrimoniais.

      A segunda tese é a de que os direitos fundamentais, correspondendo a interesses e expectativas de todos, formam o fundamento e o parâmetro da igualdade jurídica e, por isso, daquela que chamarei a dimensão “substancial” da democracia, prejudicial em respeito à sua mesma dimensão política ou “formal” fundada, por sua vez, sobre o poder da maioria. Essa dimensão outra coisa não é que o conjunto das garantias asseguradas pelo paradigma do Estado de direito: o qual, modelado às origens do Estado moderno sobre a tutela somente dos direitos de liberdade e propriedade, pode bem ser vinculado – depois do reconhecimento constitucional, como “direitos”, de expectativas vitais como a saúde, a instrução e a subsistência – também ao “Estado social”, desenvolvendo-se neste século sem as formas e garantias do estado de direito, mas somente naquela da mediação política e hoje, também por isto, em crise.

      A terceira tese refere-se à moderna natureza supranacional de grande parte dos direitos fundamentais. Viu-se como a nossa definição forneceu o critério de uma tipologia de tais direitos, dentro da qual os “direitos de cidadania” formam somente uma subclasse. Muitos desses direitos são, realmente, conferidos pelas constituições estatais independentemente da cidadania. Sobretudo, pois, depois da sua formulação em convenções internacionais recebidas pelas constituições estatais ou, de qualquer forma, recebidas pelos Estados, os direitos fundamentais tornaram-se direitos supra-estatais: limites externos, e não somente internos, aos poderes públicos e base normativa de uma democracia internacional bem distante de ser atuante, mas por esses direitos normativamente pré-figurada.

      Enfim, a quarta tese, talvez a mais importante, refere-se às relações entre os direitos e as suas garantias. Não diversamente dos outros direitos, os direitos fundamentais consistem em expectativas negativas ou positivas, às quais correspondem deveres (de prestações) ou proibições (de lesões). Chamarei de garantias primárias esses deveres e essas proibições e de garantias secundárias os deveres de reparar ou sancionar judicialmente as lesões dos direitos, ou seja, as violações das suas garantias primárias. Mas tanto os deveres e as proibições do primeiro tipo quanto os deveres do segundo tipo, sendo compreendidas logicamente no estatuto normativo dos direitos, de fato freqüentemente são não só violadas, mas também nem sequer normativamente estabelecidas. Contra a tese da confusão entre os direitos e as suas garantias, que quer dizer negar a existência dos primeiros na ausência das segundas, sustentarei a tese da sua distinção, por força da qual a inexistência das relativas garantias equivale a uma inadimplência do direito positivamente estipulado e consiste, por isso, em uma indevida lacuna, que é dever da legislação suprir.

      Essas quatro teses contradizem, sob outros tantos perfis, a concepção corrente dos direitos fundamentais que resulta dos seus muitos e heterogêneos elementos. Pode ser útil a tal fim recordar quatro clássicos lugares nos quais vêm sustentadas as teses que serão aqui discutidas.

      O primeiro passo é o capítulo II do Segundo tratado sobre o Governo de John Locke de 1690, onde Locke identifica na vida, na liberdade e na propriedade os três direitos fundamentais cuja tutela e garantia justificam o contrato social (LOCKE, 1968, p. 241-242): uma associação, essa entre liberdade e propriedade, que será repensada pelo art. 2 da Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789: “o fim de toda associação política é a defesa dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade e a resistência à opressão”.

      O segundo passo é do juspublicista alemão do século XIX Karl Friedrich von Gerber, que, em uma monografia de 1852 sobre “direitos públicos”, afirmou que aqueles outros não são mais do que “uma série de efeitos de direito público”, radicados “não tanto na esfera jurídica do singular quanto, mais do que tudo, na existência abstrata da lei” (GERBER, 1971, p. 67, 82)7: precisamente, estes são “elementos orgânicos constitutivos de um estado concreto” e, por isso, referidos ao ponto de vista dos indivíduos, “efeitos reflexos” do poder estatal (GERBER, 1971, p. 107 e 130-133)8. Trata-se de uma tese que será revisitada pela inteira juspublicística do fim dos Oitocentos – de Laband a Jellinek, de Santi Romano a Vittorio Emanuele Orlando9 – e que contradiz não somente o paradigma jusnaturalista dos direitos fundamentais qual prius lógico e axiológico, fundante e não-fundado, em relação ao artifício estatal, mas também o paradigma constitucional, que, positivando tais direitos, os configurou como vínculos e limites ao conjunto dos poderes públicos, fundamento da sua legitimidade, e não já por esses mesmos poderes legitimados.

      O terceiro passo não é de um jurista nem de um filósofo, mas de um sociólogo, Thomas Marshall, que, no seu clássico ensaio de 1950, Cidadania e Classe Social, descoberto pouco tempo faz pela ciência politológica como a doutrina mais credenciada dos direitos fundamentais, distingue o conjunto de tais direitos em três classes: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais, todos concebidos como direitos não da pessoa ou da personalidade, mas do cidadão e da cidadania. “A cidadania”, escreve Marshall, “é um status que vem conferido àqueles que são membros de pleno direito de uma comunidade” e “conferidos por tal status”, ele acrescenta, são os direitos e os deveres sobre os quais se baseia a igualdade de “todos aqueles que os possuem” (MARSHALL, 1976, p. 24).

      O quarto passo é de Hans Kelsen, que configura o direito subjetivo como “simples reflexo de um dever jurídico” 10 e afirma:

                  ter um direito significa ter a capacidade jurídica de participar da criação de uma norma individual, daquela norma individual à obra da qual vem ordenada uma sanção contra um indivíduo que – segundo a pronúncia do tribunal – cometeu um ilícito, violou o seu dever. (KELSEN, 1959, p. 87-88)

      Trata-se de uma tese hoje largamente difundida, que se resolve na identificação dos direitos fundamentais com as suas garantias e, em particular, com aquelas que chamei as suas “garantias secundárias”, ou seja, com a sua acionabilidade em juízo: “um direito formalmente reconhecido, mas não justiciável – e isso é não-aplicado ou não-aplicável pelos órgãos judiciários com procedimentos definidos – è tout court”, afirma, por exemplo, Danilo Zolo, “um direito inexistente”11 (ZOLO, 1994, p. 33).

      Desenvolverei, então, as minhas quatro teses tendo como motivação uma análise crítica desses quatro passos. Com base nisso, será possível mostrar como a constitucionalização dos direitos fundamentais por obra de constituições rígidas produziu, neste século, uma profunda mutação paradigmática do direito positivo com respeito àquele clássico do paleopositivismo jurídico.

3 – Direitos fundamentais e direitos patrimoniais

      Começamos pela primeira das quatro questões aqui anunciadas. Que coisas são os direitos fundamentais? A vida, a liberdade e a propriedade, responde Locke na passagem acima citada. A liberdade, a propriedade e a resistência à opressão, afirma o art. 2 da Declaração de 1789, que, no art. 17, reafirma o caráter de “direito sacro e inviolável” da propriedade. Analogamente, Marshall (1976, p. 9), também tendo alargado o catalogo dos direitos fundamentais, inclui na mesma classe – aquela dos direitos civis – seja a liberdade seja a propriedade.

      A conjunção, em uma mesma categoria, de figuras entre elas assim heterogêneas, os direitos de liberdade, por um lado, e o direito de propriedade, por outro, fruto da justaposição das doutrinas jusnaturalistas e da tradição civilista e romanista, é, então, uma operação originária, completa pelo primeiro liberalismo, que condicionou até os nossos dias a inteira teoria dos direitos e, com ela, do Estado de direito. Na sua base, existe um equívoco, devido ao caráter polissêmico do termo “direito de propriedade”: com o qual se entende – em Locke como em Marshall – ao mesmo tempo o direito de se tornar proprietário e de dispor dos próprios direitos de propriedade, que é um aspecto da capacidade jurídica e da capacidade de agir reconduzível à classe dos direitos civis, e o concreto direito de propriedade sobre aquele ou este bem. Uma confusão, como é fácil de entender, que, além de ser fonte de um grave equívoco teórico, foi responsável por duas opostas incompreensões e por duas conseqüentes operações políticas: a valorização no pensamento liberal da propriedade como direito do mesmo tipo da liberdade e, ao oposto, a desvalorização no pensamento marxista da liberdade enquanto desacreditada como direito “burguês” em par com a propriedade.

      Agora, se submetermos à análise essas duas figuras – “liberdade” e “propriedade”, ou, mais em geral, “direitos fundamentais” e “direitos patrimoniais” – descobriremos que entre elas existem, nitidamente, quatro diferenças estruturais, idôneas a gerar, no domínio dos direitos, se queremos continuar a usar uma mesma palavra para designar situações assim diversas, uma grande divisão: aquela justamente, entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais. Trata-se de quatro diferenças que prescindem do conteúdo das duas classes de direitos e que se referem unicamente à sua forma ou estrutura.

      A primeira diferença consiste no fato de que os direitos fundamentais – os direitos de liberdade como o direito a vida e os direitos civis, incluídos os direitos de adquirir e dispor dos bens de propriedade, bem como os direitos políticos e os direitos sociais – são direitos “universais” (omnium) no sentido lógico da quantificação universal da classe dos sujeitos que deles são titulares. Por sua vez, os direitos patrimoniais – do direito de propriedade aos outros direitos reais e aos direitos de crédito – são direitos singulares (singui), no sentido igualmente lógico de que para qualquer um deles existe um titular determinado (ou mais co-titulares, como na co-propriedade), com exclusão de todos os outros. Os primeiros são reconhecidos a todos os seus titulares em igual forma e medida; os segundos pertencem a qualquer um em maneira diversa, seja pela quantidade ou pela qualidade. Aqueles são inclusivos e formam a base da igualdade jurídica, que, como disse o art. 1 da Declaração de 89, é justamente uma égalité en droit. Os outros, os direitos patrimoniais, são exclusivos, ou seja, excludendi alios, e, por isso, são a base da desigualdade jurídica, que é também ela uma inégalité en droit. Todos somos igualmente livres para manifestar nosso pensamento, igualmente imunes de prisões arbitrárias, igualmente autônomos em dispor dos bens de nossa propriedade e igualmente titulares dos direitos à saúde e à instrução. Mas qualquer um de nós é proprietário ou credor de coisas diferentes e em medidas diversas: eu sou proprietário desta minha roupa ou da casa onde vivo, isto é, de objetos diversos daqueles dos quais outros, e não eu, são proprietários.

      Resolvem-se de tal modo muitas aporias aparentes. Quando se fala do “direito de propriedade” como de um “direito de cidadania” ou “civil”, à paridade dos direitos de liberdade, alude-se, elipticamente, ao direito de se tornar proprietário conexo (à paridade do direito de se tornar devedor, ou credor, ou empreendedor, ou trabalhador dependente) à capacidade jurídica, não ao direito de dispor dos bens de propriedade conexo (como o direito de dispor de um crédito ou de se obrigar a uma prestação) à capacidade de agir: ou seja, alude-se a direitos civis que são fundamentais porque dizem respeito a todos, no primeiro caso enquanto pessoas e, no segundo, enquanto capazes de agir. Mas esses direitos são de todo diferentes dos direitos reais sobre bens determinados, graças a eles adquiridos ou alienados, bem como distinto do direito fundamental de imunidade contra lesões de terceiros é o direito patrimonial de crédito ao ressarcimento de um dano concreto. Por outro lado, se se assume que são fundamentais todos os direitos universais, isto é, reconhecidos a todos enquanto pessoas ou cidadãos, incorporam-se a eles também os direitos sociais cuja universalidade não é escusa, como apontam, por exemplo, Jack Barbalet (1992, p. 104-109) e Danilo Zolo (1994, p. 29-35), do fato de que são inevitavelmente diferentes e com conteúdo determinado às concretas prestações que, segundo as próprias condições econômicas, qualquer um tem com base neles direito de pretender: inevitavelmente diversos são também os pensamentos que qualquer um pode expressar com base na liberdade de expressão de pensamento.

      A segunda diferença entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais é conexa à primeira e talvez ainda mais relevante. Os direitos fundamentais são direitos indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransponíveis e personalíssimos. Os direitos patrimoniais são, ao invés disso, direitos disponíveis, por sua natureza – da propriedade privada aos direitos de créditos – negociáveis e alienáveis. Estes se acumulam, aqueles permanecem invariáveis. Não é possível se tornar juridicamente mais livre, enquanto é possível se tornar juridicamente mais rico. Tendo um objeto consistente em um bem patrimonial, os direitos patrimoniais adquirem-se, trocam-se, vendem-se. As liberdades, por seu turno, não se trocam nem se acumulam. Os primeiros são alterados e talvez extintos pelo seu exercício; os outros permanecem invariados, qualquer que seja o seu exercício. Consuma-se, ou vende –se, ou troca-se, ou loca-se um bem de propriedade. Não se consuma, ao contrário, nem podem ser vendidos o direito à vida, o direito à integridade pessoal ou os direitos civis e políticos.

      A indisponibilidade dos direitos fundamentais equivale, por isso, à sua subtração tanto às decisões da política quanto ao mercado. Por força da sua indisponibilidade ativa, esses direitos não são alienáveis pelo sujeito que deles é titular: não posso vender a minha liberdade pessoal ou meu direito de voto, e, mais do que tudo, minha própria autonomia contratual. Por força da sua indisponibilidade passiva, esses direitos não são expropriáveis ou limitáveis por outros sujeitos, a começar pelo Estado: nenhuma maioria, por maior que seja, pode privar-me da vida, ou da liberdade, ou dos meus direitos de autonomia12. Trata-se, evidentemente, de uma diferença conexa à primeira, ou seja, ao caráter singular dos direitos patrimoniais e àquele universal dos direitos fundamentais. Os direitos patrimoniais são singulares enquanto podem formar objeto de troca na esfera do mercado, além de que – por exemplo, no ordenamento italiano, com base no § 3° do art. 42 da constituição – podem ser objeto de expropriação por utilidade pública. Os direitos fundamentais, ao revés, são universais enquanto são excluídos de tal esfera, não podendo ninguém privar-se, ou ser privado ou menosprezado, sem com isso deixarem de ser iguais ou universais, e, portanto, fundamentais.

      Daí resulta consolidada nossa noção formal de direito fundamental: a vida, a liberdade pessoal ou o direito de voto são fundamentais, não tanto porque correspondem a valores ou interesses vitais, mas porque universais e indisponíveis. Tanto é verdade que, onde fosse consentida a sua disposição – por exemplo, admitindo-se a escravidão ou a alienação da liberdade, ou talvez da vida, ou do voto – seriam estes (degradados a) direitos patrimoniais. Por isso, com paradoxo aparente, os direitos fundamentais são um limite, não somente aos poderes públicos, mas também à autonomia de seus titulares: nem voluntariamente se pode alienar a própria vida ou a liberdade. Mas se trata de um limite, se quisermos, paternalístico13, logicamente insuperável: o paradoxo, de fato, se teria em qualquer hora que ele faltasse e os direitos fundamentais fossem alienáveis. Já que, em tal caso, também a liberdade de alienar a própria liberdade de alienar seria alienável, com dúplice resultado: que todos os direitos fundamentais cessariam de ser universais, isto é, dizendo respeito a todos em igual forma e medida; e que a liberdade de alienar todos os próprios direitos – do direito à vida aos direitos civis e políticos – comportaria o triunfo da lei do mais forte, o final de todas as liberdades e do próprio mercado e, em última análise, a negação do direito e a regressão ao estado de natureza.

      A terceira diferença é, por sua vez, uma conseqüência da segunda e refere-se à estrutura jurídica dos direitos. Os direitos patrimoniais, como o civil, são disponíveis. Contrariamente aos direitos fundamentais, eles são sujeitos a acontecimentos, ou seja, destinados a serem constituídos, modificados ou extintos por atos jurídicos. Isso quer dizer que têm o seu título em atos de tipo negocial ou, de qualquer forma, em provimentos singulares: contratos, doações, testamentos, sentenças, provimentos administrativos, pelos quais vêm produzidos, ou modificados, ou extintos. Vice-versa, os direitos fundamentais têm títulos expressos na lei, no sentido de que são todos ex lege, isto é, conferidos através de regras gerais de grau normalmente constitucional.

      Mais simplesmente, enquanto os direitos fundamentais são normas, os direitos patrimoniais são predispostos por normas. Os primeiros identificam-se com as mesmas normas ou regras gerais que os atribuem: a liberdade de manifestação de pensamento, por exemplo, é, na Itália, disposta pelo art. 21 da Constituição, e não é outra coisa que a norma por esse artigo expressa14. Os segundos, por seu turno, são sempre situações singulares, dispostos por atos singulares e predispostos por normas que prevêem os seus efeitos: a propriedade desta minha roupa, por exemplo, não é disposta, mas predisposta por normas do código civil, com o efeito disposto pela compra e venda por este disciplinada. Podemos chamar normas téticas as do primeiro tipo, as quais imediatamente dispõem as situações com elas expressas: aqui, entram não somente as normas que prescrevem direitos fundamentais, mas também aquelas que impõem obrigações ou proibições, como as normas do código penal e aquelas de sinais rodoviários. Chamarei, de outra margem, normas hipotéticas as normas do segundo tipo, as quais não prescrevem nem impõem imediatamente nada, mas simplesmente predispõem situações jurídicas com os efeitos dos atos por elas previstos: aqui, entram não somente as normas do código civil que predispõem direitos patrimoniais, mas também aquelas que predispõem obrigações civis com os efeitos de atos negociais ou contratuais. As primeiras expressam a dimensão nomostática do ordenamento; as segundas pertencem à sua dimensão nomodinâmica. Tanto é verdade que, enquanto os direitos patrimoniais consistem sempre em situações de poder, cujo exercício consiste em atos de disposição produtivos de direitos e de obrigações na esfera jurídica própria ou de outrem (contratos, testamentos, doações e similares), o exercício dos direitos de liberdade consiste sempre em meros comportamentos, como tais sem efeitos jurídicos na esfera de outros sujeitos.

      Existe, por fim, uma quarta diferença, também essa formal e não menos importante para compreender a estrutura do Estado constitucional de direito. Enquanto os direitos patrimoniais são, por assim dizer, horizontais, os direitos fundamentais são verticais. Em um duplo sentido. Antes de tudo, no sentido de que as relações jurídicas existentes entre os titulares dos direitos patrimoniais são relações intersubjetivas de tipo civilístico – contratual, sucessório ou similar –, enquanto as relações existentes entre titulares de direitos fundamentais são relações de tipo publicístico, ou seja, do indivíduo nos confrontos (somente ou também) com o Estado. Em segundo lugar, e, sobretudo, no sentido de que, enquanto aos direitos patrimoniais correspondem, ou a genérica proibição de não-lesão no caso dos direitos reais, ou também obrigações debitórias no caso dos direitos pessoais ou de crédito, aos direitos fundamentais, onde sejam expressos por normas constitucionais, correspondem proibições e obrigações por conta do Estado, cuja violação é caso de invalidade das leis e das outras atuações públicas e cuja observação é, ao contrário, condição de legitimidade dos poderes públicos. “A declaração dos direitos contém as obrigações dos legisladores”, afirma o art. 1 da seção “deveres” da Constituição francesa do ano III. E é precisamente nesse conjunto de obrigações, ou seja, de limites e de vínculos postos à tutela dos direitos fundamentais, que reside a esfera pública do Estado constitucional de direito – em oposição à esfera privada das relações patrimoniais – e aquela que, ao início, chamei a dimensão “substancial” da democracia.

4 – Direitos fundamentais e democracia substancial

      Venho, pois, com a segunda tese que pretendo desenvolver aqui. Em qual sentido os direitos fundamentais exprimem a dimensão que eu chamo de "substancial” da democracia, em oposição àquela "política" ou "formal"? E em que sentido eles incorporam os valores prejudiciais e mais importantes em relação àqueles da democracia política? Em qual sentido, então, são frutos de uma incompreensão, que equivale de fato a sua negação como vínculos constitucionais aos poderes públicos, a tese de Gerber que os qualifica como "efeitos reflexos” e aquelas de Jellinek e de Santi Romano que os considera como o produto de uma auto-obrigação ou de uma auto-limitação do Estado, ou seja, como concessão potestativa sempre revogável ou limitável?

      A resposta a essas perguntas, também investindo sob o plano dos conteúdos dos direitos fundamentais, isto é, a natureza das necessidades por eles protegidas, é, em grande parte, resultante da análise que precede sobre os seus caracteres estruturais: a universalidade, a igualdade, a indisponibilidade, a sua atribuição ex lege e o seu viés normalmente constitucional, e, por isso, supra-ordenado aos poderes públicos como parâmetros de validade do seu exercício.

  Justamente em razão desses caracteres, os direitos fundamentais vêm de fato a se configurar, diversamente dos outros direitos, como outros tantos vínculos substanciais normativamente impostos – a garantia de interesses e necessidades de todos estipulados como vitais, ou exatamente “fundamentais” (a vida, a liberdade, a sobrevivência) – tanto às decisões de maioria quanto ao livre mercado. A forma universal, inalienável, indisponível e constitucional desses direitos se revela, em outras palavras, como a técnica – ou garantia – apresentada para a tutela disso que no pacto constitucional vem configurado como “fundamental”: ou seja, daquelas necessidades substanciais cuja satisfação é condição da convivência civil e também causa ou razão social daquele artifício que é o Estado. Para a pergunta “que coisas são os direitos fundamentais?”, se, sobre o plano da sua forma, se pode responder a priori elencando os caracteres estruturais que ilustrei anteriormente, sobre o plano dos conteúdos – ou seja, daqueles bens que são ou devem ser protegidos como fundamentais – pode-se responder somente a posteriori: logo, se se quer garantir uma necessidade ou um interesse como fundamentais, subtraem-lhes seja ao mercado seja às decisões de maiorias. Nenhum contrato, já se disse, pode dispor da vida. Nenhuma maioria política pode dispor da liberdade e dos outros direitos fundamentais: decidir que uma pessoa seja condenada sem prova, ou privada da liberdade pessoal, ou dos direitos civis ou políticos, ou, ainda, deixada morrer sem cura ou na indigência.

      Daqui a conotação “substancial” colocada pelos direitos fundamentais ao Estado de direito e à democracia constitucional. São, em verdade, justamente “substanciais”, isto é, relativas não à “forma” (ao quem e ao como), mas à “substância“ ou “conteúdo” (ao que coisa) das decisões (ou seja, ao que não é licito decidir ou não-decidir), as normas que prescrevem – além das, e talvez contra as, contingentes vontades das maiorias – os direitos fundamentais: sejam aqueles de liberdade que impõem proibições, sejam aqueles sociais que impõem obrigações ao legislador. Disso resulta desmentida a concepção corrente da democracia como sistema político fundado sobre uma série de regras que asseguram a onipotência da maioria. Se as regras sobre a representação e sobre o princípio da maioria são normas formais sobre aquilo que pela maioria é decidível, os direitos fundamentais prescrevem aquilo que podemos chamar de a esfera do indecidível: do não-decidível que, ou seja, das proibições correspondentes aos direitos de liberdade, e do não-decidível que não, das obrigações públicas correspondentes aos direitos sociais.

      Essa identificação do paradigma do “Estado de direito” com a dimensão “substancial” da democracia pode, certamente, parecer singular, se não por outro motivo, pelos múltiplos usos ideológicos que no passado incorporou a expressão “democracia substancial”15. E, todavia, é exatamente com a substância das decisões que tem a ver com as obrigações e proibições impostas às legislações dos direitos fundamentais estipulados nas normas sobre a produção, que podemos, por isso, chamar “substancial” (aquelas, por exemplo, contidas na primeira parte da constituição italiana): as quais, à diferença das normas que chamei “formais” (aquelas contidas na segunda parte) e que ditam as condições do seu vigor, estabelecem as condições da sua validade. Se, de fato, as normas formais sobre o vigor se identificam, no Estado democrático de direito, com as regras da democracia formal ou política, enquanto disciplinam as formas das decisões que asseguram a expressão da vontade da maioria, normas substanciais sobre a validade, vinculando à pena de invalidade a substância (ou o significado) das mesmas decisões em respeito aos direitos fundamentais e aos outros princípios axiológicos neles estabelecidos, correspondem às regras com as quais bem podemos caracterizar a democracia substancial.

      O paradigma da democracia constitucional não é outro que a sujeição do direito ao direito gerada por essa dissociação entre vigor e validade, entre mera legalidade e estreita legalidade, entre forma e substância, entre legitimação formal e legitimação substancial, ou se se quer, entre as weberianas “racionalidade formal” e “racionalidade material”. Em força do reconhecimento dessa dissociação, vem aquela que Letizia Gianformaggio (1993, p. 28) chamou a “presunção de regularidade dos atos cumpridos pelo poder” nos ordenamentos positivos, tanto mais se politicamente democráticos: já que o princípio formal da democracia política relativa ao quem decide e ao como se decide – em outras palavras, o princípio da soberania popular e a regra da maioria – subordina-se aos princípios substanciais expressos pelos direitos fundamentais e relativos a isso que não é licito decidir e a isso que não é licito não-decidir.

      Os direitos fundamentais inscritos nas constituições – dos direitos de liberdade aos direitos sociais – operam em tal modo como fontes de invalidação e de deslegitimação, além de legitimação. Por isso, a sua configuração como “elementos orgânicos do Estado” e “efeitos reflexos” do poder estatal no passo de Gerber aqui referido, e, mais em geral, na doutrina dos direitos públicos elaborada pela juspublicística alemã e italiana do século XIX, representa uma mudança do seu significado e exprime uma profunda incompreensão do constitucionalismo e do modelo do Estado constitucional de direito. Já que esses direitos existem, é verdade, como situações de direito positivo enquanto são estabelecidos nas constituições. Porém, justamente por isso, eles representam não uma auto-limitação sempre revogável pelo poder soberano, mas, ao contrário, um sistema de limites e de vínculos a este supra-ordenado; não “direitos do Estado” ou “para o Estado” ou “no interesse do Estado” como escreviam Gerber e Jellinek, mas direitos em direção a, e, se necessário, contra, o Estado, ou seja, contra os poderes públicos, sejam eles democráticos ou de maioria. Ademais: o fato de que os direitos fundamentais, como se mostrou no item precedente, não são predispostos por normas que prevêem os efeitos de atos singulares, mas são eles mesmos normas, retroage sobre a natureza da relação entre o sujeito e a constituição. Disso segue, de fato, que, dessas normas, ou seja, da parte substancial da constituição, são, por assim dizer, “titulares”, mais que destinatários, todos os sujeitos cujos direitos fundamentais são com elas atribuídos. Daqui, a sua não-modificabilidade pela maioria. Aquelas normas são, em via de princípio, dotadas de rigidez absoluta porque outra coisa não são que os mesmos direitos fundamentais estabelecidos como invioláveis, assim que todos e qualquer um delas são titulares.

      Sob esse aspecto, podemos bem dizer que o paradigma da democracia constitucional é filho da filosofia contratualista. Num duplo sentido. No sentido de que as constituições outra coisa não são que contratos sociais em forma escrita e positiva: pactos fundantes da convivência civil gerados historicamente pelos movimentos revolucionários que foram impostos aos poderes públicos, de outra forma absolutos, como fontes da sua legitimidade. E no sentido de que a idéia do contrato social é uma metáfora da democracia: da democracia política, dado que alude ao consenso dos contraentes e vale então fundar, pela primeira vez na história, uma legitimação de baixo, e não do alto, do poder político; mas também uma metáfora da democracia substancial, dado que esse contrato não é um novo acordo, mas tem como cláusulas, e conjuntamente como causa e razão precisas, a tutela dos direitos fundamentais, cuja violação por parte do soberano legitima a ruptura do pacto e o exercício do direito de resistência16.

      Revelam-se de tal modo as ascendências teóricas dos direitos fundamentais, bem diversas daquelas civilistas e romanistas dos direitos patrimoniais. Se é verdade que os direitos fundamentais outra coisa não são que o conteúdo do pacto constituinte, devemos reconhecer a Thomas Hobbes, teórico do absolutismo, a invenção do seu paradigma. Esse paradigma é aquele expresso pelo direito à vida como direito inviolável de todos, de cuja tutela depende a justificação da superação do bellum omnium do estado de natureza e a construção do 

                  grande leviatã, chamado um Estado (em latim civitas), o qual não é nada mais do que um homem artificial, bem que de maior estatura e força que do natural, para a proteção e defesa do qual foi concebido (HOBBES, 1911, p. 3). 

      Nasce com Hobbes a configuração do Estado como esfera pública instituída para a garantia da paz e, juntamente, dos direitos fundamentais.

      Essa esfera pública e esse papel garantista do Estado, limitados por Hobbes para a tutela do direito à vida, foram depois, historicamente, alargando-se a outros direitos afirmados como fundamentais: aos direitos civis e de liberdade, por obra do pensamento iluminista e das revoluções liberais das quais nasceram as primeiras declarações de direitos e as constituições oitocentistas; depois aos direitos políticos, afirmados com o progressivo alargamento do sufrágio e da capacidade política; depois, ainda, ao direito de greve e aos direitos sociais nas constituições dos novecentos, até aos novos direitos à paz, ao ambiente e à informação hoje requeridos e ainda não todos constitucionalizados. Sempre os direitos fundamentais se afirmam como leis do mais fraco em alternativa à lei do mais forte que vigorava e vigoraria na sua ausência.

      A história do constitucionalismo é a história desse progressivo alargamento da esfera pública dos direitos17. Uma história não teórica, mas social e política, dado que nenhum desses direitos caiu do céu, mas todos foram conquistados por rupturas institucionais: as grandes revoluções americana e francesa, depois as medidas oitocentistas para os estatutos, por fim as lutas operárias, feministas, pacifistas e ecológicas dos novecentos. Todas as diversas gerações de direitos, podemos bem dizer, correspondem a outras tantas gerações de movimentos revolucionários: das revoluções liberais contra o absolutismo régio dos séculos passados até as constituições do século XX, incluída aquela italiana de 1948, nascida da Resistência e do repúdio ao fascismo como pacto fundante da democracia constitucional. Dessa história faz parte também a extensão, seja ainda embrionária, do paradigma do constitucionalismo internacional. Também na história das relações internacionais foi de fato produzida, com a instituição da ONU e com as cartas internacionais sobre direitos humanos, uma ruptura epocal: a ruptura daquele ancien régime internacional nascido, três séculos atrás, da paz de Westfália, fundado sobre o princípio da soberania absoluta dos Estados e tendo alcançado sua falência com a tragédia das duas guerras mundiais.

5 – DIREITOS FUNDAMENTAIS E CIDADANIA

      É essa internacionalização dos direitos fundamentais a terceira tese ao início indicada, a qual agora pretendo discutir. Depois do nascimento da ONU, e graças à aprovação de cartas e convenções internacionais sobre direitos humanos, esses direitos não são mais “fundamentais” somente no interior dos Estados em cujas constituições são formulados, mas são direitos supra-estatais, ao quais os Estados são vinculados e subordinados também no nível do direito internacional; não mais direitos de cidadania, mas direitos das pessoas independentemente das suas diferentes cidadanias.

      E justamente essa mutação corre o risco de ser ignorada por uma parte relevante da hodierna filosofia política. Dois anos depois da Declaração universal dos direitos do homem, Thomas Marshall, no seu ensaio aqui referido Citizenship and Social Class, identificou sobre a cidadania todos os vários conjuntos dos direitos fundamentais, por ele distintos nas três classes dos direitos civis, dos direitos políticos e dos direitos sociais, todos chamados, indistintamente, direitos de cidadania. Uma tese similar, que contradiz todas as constituições modernas – não somente a Declaração universal de direitos de 1948, mas também a maior parte das constituições estatais que conferem quase todos esses direitos às “pessoas” e não somente aos ”cidadãos” – foi nesses últimos anos revigorada18, quando exatamente os nossos prósperos países e as nossas ricas cidadanias têm começado a ser ameaçados pelo fenômeno das imigrações de massa. No momento em que se decidiu levar a sério os direitos fundamentais, foi-lhes negada a universalidade, condicionando o seu inteiro catálogo à cidadania, independentemente do fato que quase todos, exceto os direitos políticos e alguns direitos sociais, são atribuídos pelo direito positivo – seja estatal ou internacional – não somente aos cidadãos, mas a todas as pessoas.

      Na base dessa operação, existe uma deformação do conceito de “cidadania”: compreendido por Marshall não já como um específico status subjetivo incorporado àquele da “personalidade”, mas como pressuposto de todos os direitos fundamentais, inclusive aqueles da pessoa, a começar pelos “direitos civis”, que, em todos os ordenamentos evoluídos, não dizem respeito, apesar do seu nome, aos sujeitos enquanto cidadãos, mas unicamente enquanto pessoas19. A cidadania vem, dessa maneira, substituir a igualdade como categoria basilar da teoria da justiça e da democracia. Para Marshall, essa substituição e o vínculo do inteiro conjunto dos direitos fundamentais à cidadania eram, talvez, ditados pela vontade de fornecer um fundamento teórico mais sólido às políticas do Welfare. O seu escopo – e esse é indubitavelmente o seu aspecto progressivo – era aquele de oferecer, por meio de tal categoria, uma base teórica aos direitos sociais em vista da superação em sentido social-democrático, o que precisamente naqueles anos realizava nos países de capitalismo avançado. Por um lado, então, a categoria da igualdade foi abandonada no momento em que a qualidade de pessoa e a titularidade universal dos direitos foram solenemente reconhecidas, não somente pelas novas constituições estatais do segundo pós-guerra, mas também pela Declaração universal de 1948, a todos os seres humanos do planeta. Mas, por outro lado, a assunção dos direitos sociais como direitos vinculados e inderrogáveis, como eram os clássicos direitos de liberdade, veio conferir uma nova qualidade à democracia. Ainda nos tempos de Marshall, de outro canto, os processos de globalização e de integração mundial e os fenômenos migratórios não tinham alcançado o ponto para colocar em contradição estridente os direitos do homem e os direitos do cidadão.

      Mais difícil é compreender o sentido da operação à distância de 50 anos do ensaio de Marshall. Por um lado, de fato, como se viu, muitos teóricos hodiernos da cidadania chegaram a negar ou, quando menos, a colocar em dúvida a natureza de “direito” dos direitos sociais e, por conseguinte, a abandonar, frente à crise de eficácia e de legalidade do Estado social julgada irreversível, a idéia de um Estado social de direito baseado justamente sobre direitos ao invés de sobre a discricionariedade de seu aparato. Por outro lado, diante da paralela crise do Estado nacional e da soberania estatal, aos quais a cidadania é conexa, parece hoje ainda menos legítimo declinar os direitos fundamentais em termos estatalísticos. A soberania também dos países mais fortes está de fato deslocada, juntamente aos limites a esta impostos pelas estipulações dos direitos, em sede supra-nacional. Ao mesmo tempo, o crescimento das interdependências e concomitantemente das desigualdades entre países ricos e países pobres, além dos fenômenos de migração e globalização, advertem-nos de que estamos nos aproximando de uma integração mundial que dependerá também do direito, se este se desenvolver vinculado à opressão e à violência ou, ao contrário, à democracia e à igualdade.

      Nessas condições, a categoria da cidadania corre o risco de se apresentar para fundar, bem mais do que uma teoria da democracia baseada na expansão dos direitos, uma idéia regressiva e, num longo prazo, ilusória da democracia em somente um país, ou melhor, nos nossos ricos países do Ocidente, ao preço da não-democracia no resto do mundo20. Com o resultado de uma definitiva desqualificação dos direitos fundamentais e do nosso modelo de democracia, cuja credibilidade é inteiramente ligada ao seu proclamado universalismo. Esses direitos – como bem sabemos – sempre foram universais somente na palavra: se, normativamente, desde a Declaração francesa de 1789, foram sempre direitos da pessoa, de fato, sempre foram direitos do cidadão. E isso porque, em verdade, na época da revolução francesa e depois nos Oitocentos e na primeira metade dos Novecentos, até ainda a Declaração universal de 1948 e os anos em que escrevia Marshall, a dissociação entre “pessoa” e “cidadão” não criava problemas, não sendo os nossos países ameaçados pela pressão migratória. Mas seria hoje uma triste falência do nosso modelo de democracia, e, com ele, dos chamados valores do Ocidente, se o nosso universalismo normativo fosse renegado no mesmo momento em que veio colocado à prova.

      É claro que, ao longo do tempo – em que as interdependências, os processos de integração e as pressões migratórias são destinados a desenvolver – essa antinomia entre igualdade e cidadania, entre o universalismo dos direitos e o seus limites estatais, não poderá ser resolvida, pelo seu caráter sempre mais insustentável e explosivo, senão com a superação da cidadania, pela definitiva des-nacionalização dos direitos fundamentais e a correlativa desestatização das nacionalidades. Contudo, é também claro que, se se quer prevenir gradualmente e pacificamente esses resultados, e juntamente dar respostas imediatas àquilo que é já hoje o mais grave problema da humanidade e o maior desafio à democracia, a política e, ainda antes, a filosofia política deveriam promover esses processos, conscientizando-se da crise irreversível das velhas categorias da cidadania e da soberania, além da inadequação daquele frágil remédio de validade discriminatória que foi, até hoje, o direito de asilo.

      O direito de asilo tem, verdadeiramente, um vício de origem: ele representa, por assim dizer, a outra face da cidadania e da soberania, ou seja, do limite estatal imposto aos direitos fundamentais. Tradicionalmente, ademais, ele sempre foi reservado aos refugiados por perseguições políticas, ou raciais ou religiosas, e não também aos refugiados por lesões ao seu direito à subsistência. Essas suas restrições pressupostas refletem uma fase paleoliberal do constitucionalismo: na qual, por um lado, os direitos fundamentais reconhecidos eram os direitos políticos e os de liberdade negativa, de cujas violações eram vítimas somente restritas élites advertidas pelas élites liberais dos países de acolhida como seus “similares” e, por outro lado, as emigrações por razões econômicas se desenvolviam prevalentemente no interior do Ocidente, pelos países europeus àqueles americanos, com benefício tanto dos primeiros quanto dos segundos.

      Hoje, esses pressupostos do velho direito de asilo foram mudados. As hodiernas constituições européias e as cartas internacionais de direitos têm incorporado aos clássicos direitos de liberdade negativa uma longa série de direitos humanos positivos – não mais somente à vida e à liberdade, mas também à sobrevivência e à subsistência – desancorando-os da cidadania e fazendo também do seu uso a base da moderna igualdade en droit e da dignidade da pessoa. Não existe, então, razão porque aqueles pressupostos não sejam estendidos também às violações mais graves desses outros direitos: aos refugiados econômicos além daqueles políticos. É, entretanto, prevalente a tese restritiva, ulteriormente esvaziada pelas recentes leis sobre a imigração, ainda mais restritivas. O resultado é um fechamento do Ocidente que corre o risco de provocar não somente o falimento do desenho universalista da ONU, mas também uma involução das nossas democracias e a formação de uma identidade regressiva, cimentada pela aversão ao diferente e por aquilo que Habermas chamou sciovinismo del benessere (HABERMAS, 1992, p. 136)21. Existe, de fato, um nexo profundo entre democracia e igualdade e, inversamente, entre desigualdade nos direitos e racismo. Assim como a igualdade nos direitos gera o sentido da igualdade baseada no respeito ao outro como igual, a desigualdade nos direitos gera a imagem do outro como desigual, ou seja, inferior antropologicamente porque inferior juridicamente22.

6 – DIREITOS FUNDAMENTAIS E GARANTIAS

      Os argumentos teóricos-jurídicos com os quais se responde normalmente à tese do caráter supra-estatal dos direitos humanos, sejam estes de liberdade ou sociais, são de marca realista. Os direitos escritos nas cartas internacionais não seriam direitos porque desprovidos de garantias. Pela mesma razão, não seriam direitos, segundo muitos filósofos e politólogos, os direitos sociais, igualmente privados de adequadas garantias jurisdicionais23. Trata-se da quarta tese, classicamente formulada por Hans Kelsen, que me propus ao início discutir: apesar de sua proclamação, ainda que em nível constitucional, um direito não-garantido não seria, realmente, um direito.

      Estamos, pois, na quarta questão no início anunciada, prejudicial a qualquer discurso sobre direitos, sejam eles de direito interno ou internacional: aquela da relação entre os direitos e as suas garantias. É claro que se confundirmos direitos e garantias resultam desqualificadas, sobre o plano jurídico, aquelas que são as duas mais importantes conquistas do constitucionalismo dos Novecentos: a internacionalização dos direitos fundamentais e a constitucionalização dos direitos sociais, reduzidos um e outro, na ausência de adequadas garantias, a simples declarações retóricas, ou melhor, a vagos programas políticos juridicamente irrelevantes. Bastaria isso para desaconselhar e para justificar a distinção, no plano teórico, entre direitos e suas garantias: as definições teóricas são definições estipulativas, cuja aceitação depende de sua idoneidade para satisfazer as finalidades explicativas e operativas com elas perseguidas.

      Mas não é essa a razão principal – necessária, além de suficiente – para distinguir conceitualmente entre os direitos subjetivos, que são as expectativas positivas (ou de prestação) ou negativas (de não-lesão) atribuídas a um sujeito por uma norma jurídica, e os deveres correspondentes que lhes constituem as garantias igualmente ditadas por normas jurídicas: sejam essas as obrigações ou as proibições aos direitos correlativas, que formam aquelas que no item 2 chamei de garantias primárias, ou também as obrigações de segundo grau de aplicar as sanções ou declarar a nulidade das violações das primeiras, que formam aquelas que chamei garantias secundárias. Isso que faz necessária essa distinção é uma razão muito mais de fundo, intrinsecamente ligada à natureza positiva e nomodinâmica do direito moderno.

      Entre sistema nomostático, como é a moral e como seria o sistema de direito natural fundado unicamente em princípios de razão, as relações entre figuras deônticas são relações puramente lógicas: dado um direito, ou seja, uma expectativa jurídica positiva ou negativa, há, em relação a um outro sujeito, uma obrigação ou uma proibição a esse direito correspondente; dada uma permissão positiva, o comportamento permitido não é vedado e não existe então a relativa proibição; dada uma obrigação, do comportamento obrigatório não é permitida a omissão e não há, então, a relativa permissão negativa, enquanto existe a relativa permissão positiva. Nesse sistema, a existência ou a não-existência de tais figuras deônticas é implicada pela existência ou pela inexistência daquelas a elas correlativas assumidas como “dadas”. Consequentemente, não existem nem antinomias nem lacunas: onde duas normas sejam entre elas contraditórias, uma das duas deve ser excluída como inexistente, ainda antes do que como inválida. É esse o sentido do princípio jusnaturalista veritas non auctoritas facit legem: na falta de critérios formais de identificação do direito existente, os critérios disponíveis são critérios lógicos e racionais de tipo imediatamente substancial, isto é, ligado ao que dizem as normas.

      Tudo isso não é verdade nos sistemas nomodinâmicos de direito positivo. Nesses sistemas, a existência ou a inexistência de uma situação jurídica, ou seja, de uma obrigação ou de uma proibição ou de uma permissão ou de uma expectativa jurídica, depende da existência de uma norma positiva que a preveja, a qual, por sua vez, não é deduzida da existência de outras normas, mas é induzida, como fato empírico, do ato de sua produção. É bem possível, consequentemente, que, dado um direito subjetivo, não exista – ainda que devesse existir – o dever ou a proibição correspondente por causa da (indevida) inexistência da norma que a prevê. Assim como é possível que, dada uma permissão, exista – ainda que não devesse existir – a proibição do mesmo comportamento por causa da (indevida) existência de norma que a preveja. São justamente possíveis e em qualquer medida inevitáveis, em sistemas similares, tanto lacunas quanto antinomias. Disso deriva que, nessas condições, expressas pelo princípio juspositivista auctoritas non veritas facit legem, as teses da teoria do direito, como a definição de direito subjetivo como uma expectativa jurídica a que corresponde um dever ou uma proibição, são – não diversamente das definições de proibição como não-permissão da comissão ou de dever como não-permissão da omissão, e, por fim, do principio lógico de não-contradição – teses de tipo deôntico ou normativo, não sobre o ser, mas sobe o dever-ser do direito de que se fala.

      Recolocamos em exame, desse modo, a noção kelseniana de “direito subjetivo”. Kelsen opera não uma, mas bem duas identificações ou reduções do direito subjetivo a imperativos a ele correspondentes. A primeira é aquela do direito subjetivo ao dever, em princípio, do sujeito na relação jurídica com o seu titular, ou seja, aquela que chamei garantia primária: “não existe nenhum direito para qualquer um”, ele afirma, “sem um dever jurídico para qualquer outro.” (KELSEN, 1959, p. 76)24. A segunda é aquela do direito subjetivo ao dever que, onde ocorra a violação, incumbe a um juiz aplicar a sanção, aquela que chamei de garantia secundária: “o direito subjetivo” consiste “não já no interesse presumido, mas na proteção jurídica” (KELSEN, 1959, p. 81) 25.

      Bem, essas identificações são teses teóricas, seguramente não mais verdadeiras do que quanto não são as equivalências lógico-deônticas entre permissão da comissão e não-proibição, entre permissão da omissão e não dever, entre proibição e não permissão da comissão e entre dever e não permissão da omissão. Mas, igualmente a estas, aquelas podem ser desmentidas, ou melhor, violadas, pela realidade efetiva do direito.

      É de fato possível que em um sistema de direito positivo existam, sem dúvida, antinomias, ou seja, contradições entre normas, além da existência – que, por sua vez, é um fato – de critérios para a sua solução; que ao lado da liberdade, e, então, da permissão de manifestar livremente o próprio pensamento, exista, como, por exemplo, no direito italiano, a proibição penal do vilipêndio ou de outros crimes de opinião. Em tais casos, não podemos negar a existência de normas em conflito, ou seja, no nosso exemplo, a existência da permissão juntamente à proibição do mesmo comportamento: se poderá somente dizer que as normas sobre crimes de opinião são normas inválidas, se existentes (ou vigentes), até que não sejam anuladas pela Corte constitucional. O princípio de não-contradição, ou seja, a proibição de antinomias, é, em suma, em relação ao direito positivo, um princípio normativo.

      Analogamente, é bem possível que, de fato, não exista a obrigação ou a proibição correlativa a um direito subjetivo e, mais ainda, que não exista a obrigação de aplicar a sanção em caso de violação de uns e de outros: que existam, em outras palavras, lacunas primárias, pela falta de estipulação das obrigações e das proibições que do direito subjetivo constituem as garantias primárias, e lacunas secundárias, pela falta de órgãos obrigatórios para sancionar ou para validar as violações, ou seja, para aplicar as garantias secundárias. Mas também em tais casos não podemos negar a existência do direito subjetivo estipulado por uma norma jurídica: se poderá somente lamentar a lacuna que faz dele um “direito de carta” (GUASTINI, 1994, p. 168-170) e afirmar a obrigação de colmatá-la por obra do legislador. O princípio de completude, ou seja, a proibição de lacunas, é também ele, como o princípio de não-contradição, um princípio teórico normativo.

      Tudo isso é, provavelmente, obscurecido na teoria de Kelsen, pelo fato de que nessa vêm assumidos, como figuras paradigmáticas do direito subjetivo, os direitos patrimoniais. Em tais casos, com efeito, a definição teórica de direito subjetivo, como expectativa a que corresponde um dever, não levanta nenhum problema, sobretudo no que se refere às garantias primárias, dado que não parece, de fato, uma tese normativa, mas corresponde exatamente a isso que, na verdade, acontece: “uma parte contraente”, escreve Kelsen, 

                  tem um direito nos confrontos da outra somente se esta tem um dever jurídico de se comportar de uma determinada maneira nos confrontos da primeira; e a segunda tem um dever jurídico de comportar-se em uma determinada maneira nos confrontos da primeira somente se o ordenamento jurídico dispõe uma sanção em caso de comportamento contrário (KELSEN, 1959, p. 82)26.

      Mas isso depende do fato de que tais direitos, como se viu, não são dispostos, mas predispostos por normas hipotéticas como efeitos de contratos, os quais são, sempre, simultaneamente, as fontes das correlativas obrigações que formam as garantias primárias. E depende, por outro lado, da milenar tradição jurisprudencial do direito civil, que sempre associou estreitamente os direitos patrimoniais ao direito de ação como técnica específica para ativar as garantias secundárias.

      Diverso é o caso dos direitos fundamentais – de todos, e não somente dos direitos sociais e daqueles de nível internacional – que, como mostrei, são imediatamente (dispostos por) normas téticas. Nesse caso, a existência das relativas garantias – daquelas primárias e, mais ainda, daquelas secundárias – não é, de fato, descontadas, dependendo da sua expressa estipulação por conta de normas de direito positivo, bem distintas daquelas que prescrevem os direitos. Na ausência do direito penal, por exemplo, não existiria, se não por força do princípio de legalidade penal, garantia primária para nenhum dos direitos por ele tutelados, a começar pelo direito à vida. Na ausência da norma sobre proibição de prisão sem mandado motivado pela autoridade judiciária, não existiria a garantia primária da liberdade pessoal. Ainda mais evidentemente, na ausência de normas sobre a jurisdição, não existiriam, por nenhum direito, garantias secundárias. Mas, obviamente, seria absurdo negar, por isso somente, a existência dos direitos, em presença das normas que os dispõem, em vez de, mais corretamente, negar a existência das suas garantias na ausência das normas que as predispõem.

      É, em suma, a estrutura nomodinâmica do direito moderno que impõe, por força do princípio da legalidade, aquela norma de reconhecimento das normas positivamente existentes, para distinguir entre os direitos e as suas garantias: para reconhecer que os direitos existem se, e somente se, normativamente estáveis, assim como as garantias constituídas pelas obrigações e pelas proibições correspondentes existem se, e somente se, também essas sejam normativamente estáveis. E isso vale tanto para os direitos de liberdade (negativos) como para os direitos sociais (positivos), tanto para aqueles estabelecidos pelo direito estatal como para aqueles estabelecidos pelo direito internacional. Se não queremos cair em uma forma de paradoxal jusnaturalismo realista e não queremos desenvolver às nossas teorias funções legislativas, devemos admitir que os direitos e as normas que os exprimem existem tanto quanto são positivamente produtos do legislador, seja este ordinário, ou constitucional ou internacional.

      A conseqüência dessa distinção entre direitos e garantias é de enorme importância, não somente em nível teórico, mas também em nível metateórico. Sobre o plano teórico, essa distinção comporta a afirmação de que o nexo entre expectativas e garantias não é um nexo empírico, mas um nexo normativo, que pode ser contraditado pela existência das primeiras e pela inexistência das segundas; e que, então, a ausência de garantias deve ser considerada como uma indevida lacuna, a qual é obrigação dos poderes públicos, internos e internacionais, completar; assim como as violações dos direitos por obra dos poderes públicos contra os seus cidadãos devem ser concebidas como indevidas antinomias, as quais é obrigatório sancionar como atos ilícitos ou anular como atos inválidos. Sobre o plano metateórico, a distinção comporta a afirmação de um papel não puramente descritivo, mas, sim, crítico e normativo da ciência jurídica nos confrontos com seu objeto: crítico nos confrontos com as lacunas e com as antinomias que ela tem o dever de revelar, e normativo em relação à legislação e à jurisdição a que ela impõe a sua completude ou a sua reparação.

      Outra questão é aquela da realizabilidade concreta das garantias. Certamente, a enunciação constitucional dos direitos sociais a prestações públicas positivas não foi acompanhada pela elaboração das adequadas garantias sociais ou positivas, isto é, de técnicas de defesa e de justiciabilidade comparáveis àquelas apresentadas pelas garantias liberais ou negativas para a tutela dos direitos de liberdade. O desenvolvimento, no século XX, do Welfare State aconteceu, em grande parte, por meio do simples alargamento dos espaços de discricionariedade dos aparatos burocráticos, e não já por meio de instituições e técnicas de garantias apropriadas aos novos direitos. Ainda menos foram realizadas garantias para sustentar os direitos humanos estipulados pelas cartas internacionais, os quais são testemunhos de uma total inefetividade. Mas isso quer somente dizer que existe uma diferença abissal entre norma e realidade, que deve ser colmatada ou, quando menos, reduzida enquanto fonte de deslegitimação não somente política, mas também jurídica, dos nossos ordenamentos.

      Ocorre distinguir, a propósito, entre realizabilidade técnica e realizabilidade política. Sobre o plano técnico, nada autoriza a dizer que os direitos sociais não sejam garantíveis à paridade dos outros direitos porque os atos requeridos para a sua satisfação seriam inevitavelmente discricionários, não-formalizáveis e não-suscetíveis de controle e coerções jurisdicionais. Antes de tudo, essa tese não vale para todas as formas de garantias ex lege que, diferentemente das práticas burocráticas e potestativas próprias do Estado assistencial e clientelista, podem bem ser realizadas por meio de prestações gratuitas, obrigatórias e, por fim, automáticas: como a instrução pública gratuita e obrigatória, a assistência sanitária igualmente gratuita ou a renda mínima garantida. Em segundo lugar, a tese da não-justiciabilidade desses direitos é desmentida justamente pela mais recente experiência jurídica, que, por vias diversas (provimentos de urgência, ações de danos e similares), viu serem ampliadas as suas formas de tutela jurisdicional, em particular naquilo que tange aos direitos à saúde, à previdência e à justa retribuição. Em terceiro lugar, além da sua justiciabilidade, esses direitos têm o valor de princípios informadores do sistema jurídico, largamente utilizados nas soluções das controvérsias pela jurisprudência das cortes constitucionais. Sobretudo, pois, novas técnicas de garantias podem bem ser elaboradas. Nada impediria, por exemplo, que, em nível constitucional, se estabelecessem quotas mínimas do orçamento para destinar aos vários capítulos da despesa social e se tornasse de tal modo possível o controle de constitucionalidade sobre as leis orçamentárias. E nada impediria, ao menos sobre o plano técnico-jurídico, a introdução de garantias de direitos internacionais: como a instituição de um código penal internacional e de uma correlativa jurisdição sobre crimes contra a humanidade, de resto já projetada pelo Tratado de Roma de 17 de julho de 1998, por este subordinada à retificação de, ao menos, sessenta Estados; a introdução de um controle jurisdicional de constitucionalidade sobre todos os atos dos organismos internacionais e talvez sobre todos aqueles dos Estados por violações de direitos humanos; a imposição e a regulação, enfim, de ajudas econômicas e de intervenções humanitárias, estipuladas nas formas das garantias a favor dos países mais pobres.

      Totalmente diversa, ainda que normalmente venha confundida com a primeira e talvez a esta devida, é a questão da realização política dessas garantias: em nível interno e, ainda mais longe e difícil, em nível internacional. É certo que a satisfação dos direitos sociais é custosa, exige a retirada e a redistribuição de recursos, é incompatível com a lógica de mercado, ou quando menos, comporta limites ao mercado. Entretanto, certo é que levar a sério os direitos humanos proclamados em nível internacional requer que mantenhamos em discussão os nossos níveis de vida que consentem ao Ocidente bem-estar e democracia por conta do resto do mundo. Certamente, além disso, o atual sopro liberalista, que do absolutismo do mercado e do absolutismo da maioria fez um novo credo ideológico, não faz esperar a disponibilidade das classes dominantes, em maioria no interior dos nossos ricos países e em minoria no que diz respeito ao resto do mundo, em verem-se limitadas e vinculadas por regras e direitos informados pelo princípio da igualdade. Mas, então, dizemos que os obstáculos são de natureza política, e consistem, hoje mais do que nunca, na luta pelos direitos e por suas garantias. Isso que não é consentido é a falácia realista do pertencimento do direito ao fato e aquela determinista da identificação entre isso que acontece e isso que não pode não-acontecer.

7 – O CONSTITUCIONALISMO COMO NOVO PARADIGMA DO DIREITO

      As quatro teses até aqui desenvolvidas consistem em conceber o constitucionalismo – que veio a configurar-se no século XX nos ordenamentos estatais democráticos com a generalização das constituições rígidas e, em prospectiva, no direito internacional com a sujeição dos Estados às convenções sobre direitos humanos – como um novo paradigma fruto de uma profunda alteração interna do paradigma paleojuspositivista.

      O postulado do positivismo jurídico clássico é de fato o princípio de legalidade formal, ou, se se quiser, de mera legalidade, aquela metanorma de reconhecimento das normas vigentes. Com base nisso, uma norma jurídica, qualquer que seja o seu conteúdo, existe e é valida por força unicamente das formas da sua produção. A sua afirmação, como sabemos, provocou uma inversão de paradigmas no que diz respeito ao direito pré-moderno: a separação entre direito e moral, ou mesmo entre validade e justiça, por força do caráter inteiramente artificial e convencional do direito existente. A juridicidade de uma norma não depende mais, no direito moderno, da sua intrínseca justiça ou racionalidade, mas somente da sua positividade, ou seja, do fato de ser “posta” pela autoridade competente na forma prevista para a sua produção. O constitucionalismo, aquele que resulta da positivação dos direitos fundamentais como limites e vínculos substanciais à legislação positiva, corresponde a uma segunda revolução na natureza do direito, que se expressa em uma alteração interna do paradigma positivista clássico. Se a primeira revolução se expressou na afirmação da onipotência do legislador, ou seja, do princípio da mera legalidade (ou da legalidade formal), aquela norma de reconhecimento da existência das normas, essa segunda revolução se realizou com a afirmação daquilo que podemos chamar de princípio da estreita legalidade (ou da legalidade substancial): isto é, com a submissão também da lei aos vínculos não mais somente formais, mas substanciais impostos pelos princípios e pelos direitos fundamentais expressos nas constituições. E se o princípio de mera legalidade tinha produzido a separação entre validade e justiça e a cessação da presunção de justiça do direito vigente, o princípio de estreita legalidade produz a separação entre validade e vigor e a cessação da presunção apriorística da validade do direito existente. Em um ordenamento dotado de constituição rígida, de fato, para que uma norma seja válida, além de vigente, não basta que seja emanada nas formas predispostas para sua produção, mas é também necessário que os seus conteúdos substanciais respeitem os princípios e os direitos fundamentais estabelecidos na constituição. Através da estipulação daquela que, no item 4, chamei de a esfera do indecidível (do “indecidível que”, expressa pelos direitos de liberdade, e do “indecidível que não”, expressa pelos direitos sociais), as condições substanciais de validade das leis, que no paradigma pré-moderno se identificavam com os princípios do direito natural e no paradigma paleopositivista foram removidos pelo princípio puramente formal da validade como positividade, penetram novamente nos sistemas jurídicos sob a forma de princípios positivos de justiça estipulados em normas supra-ordenadas à legislação.

      Existe um momento na história no qual pode ser colocada essa mudança de paradigma. É o momento seguinte à catástrofe da segunda guerra mundial e à derrota do nazi-fascismo. No ambiente cultural e político no qual nasce o moderno constitucionalismo – a Carta da ONU de 1945, a Declaração universal dos direitos de 1948, a constituição italiana de 1948, a lei fundamental da Republica federal alemã de 1949 –, compreende-se que o princípio de mera legalidade, se é suficiente para garantir contra os abusos da jurisdição e da administração, é insuficiente para garantir contra os abusos da legislação e contra as involuções antiliberais e totalitárias dos supremos órgãos de decisão. E se redescobre, por isso, o significado de “constituição”, como limite e vínculo aos poderes públicos, estipulados há dois séculos no art. 16 da Declaração dos direitos de 1789: “toda sociedade na qual não são asseguradas as garantias dos direitos nem a separação dos poderes não tem constituição”. Redescobre-se, em suma – em nível não somente estatal, mas também internacional –, o valor da constituição como conjunto de normas substanciais voltadas a garantir a divisão dos poderes e os direitos fundamentais de todos: ou seja, exatamente os dois princípios que foram negados pelo fascismo e que do fascismo são a negação.

      Podemos expressar a mudança de paradigma do direito produzido pela constitucionalização rígida desses princípios afirmando que a legalidade vem com base nisso assinalada por uma dupla artificialidade: não mais somente pelo “ser” do direito, ou seja, da sua “existência” – não mais derivável da moral nem observável na natureza, mas justamente “posto” pelo legislador – mas também pelo seu “dever-ser”, ou seja, pelas suas condições de “validade”, também essas positivadas em nível constitucional, como “direito sobre o direito”, em forma de limites e vínculos jurídicos à produção jurídica. Não se trata de colocar em crise a separação entre direito e moral realizada com o primeiro juspositivismo27, mas, ao contrário, de um complemento do paradigma juspositivo e, juntamente, do Estado de direito: graças a essa dupla artificialidade, de fato, não somente a produção do direito, mas também as escolhas pelas quais essa produção vem projetada, são positivadas por normas jurídicas, e também o legislador vem submetido à lei. Assim que a legalidade positiva no Estado constitucional de direito mudou de natureza: não é mais somente (mera legalidade) condicionante, mas é ela mesma (estreita legalidade) condicionada por vínculos também substanciais relativos aos seus conteúdos ou significados.

      Disso é derivada uma alteração interna do modelo juspositivo clássico que revestiu tanto o direito quanto os discursos sobre o direito, ou seja, a jurisdição e a ciência jurídica. A estreita ou estrita legalidade, justamente porque condicionada por vínculos de conteúdo a ela impostos pelos direitos fundamentais, colocou, de fato, uma dimensão substancial na teoria da validade como na teoria da democracia, produzindo uma dissociação e uma virtual diferenciação entre validade e vigor das leis, entre dever-ser e ser do direito, entre legitimidade substancial e legitimidade formal dos sistemas políticos.

      De outra parte, essa diferenciação – que forma um traçado fisiológico (como também, em certos limites, patológico) da democracia constitucional, o seu maior valor e o seu signo de reconhecimento, além de que o seu maior defeito – alterou também a natureza da jurisdição e da ciência jurídica. A jurisdição não é mais simplesmente a sujeição do juiz à lei, mas é também análise crítica de seu significado para controlar a legitimidade constitucional. E a ciência jurídica não é mais, como também nunca foi, simples descrição, mas é também crítica e projeção do seu próprio objeto: crítica do direito inválido, mesmo que vigente, porque em contraste com a constituição; reinterpretação, à luz dos princípios estabelecidos na constituição, do inteiro sistema normativo; análise das antinomias e das lacunas; elaboração e projeção das garantias faltantes ou inadequadas e, todavia, impostas por normas constitucionais.

      Daqui surge uma responsabilidade da cultura jurídica e politológica, que é tanto mais difícil quanto maior é essa diferenciação e, então, o dever de dar conta da inefetividade dos direitos constitucionalmente estipulados. Existe um paradoxo epistemológico que caracteriza as nossas disciplinas: nós fazemos parte do universo artificial que descrevemos e contribuímos para construí-lo de maneira muito mais determinante do que pensamos. Depende, por isso, também da cultura jurídica que os direitos, segundo a grandiosa fórmula de Ronald Dworkin, sejam levados a sério: já que estes outra coisa não são que significados normativos, cuja percepção e co-divisão social como vinculantes é a primeira, indispensável condição da sua efetividade.

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