Índio coloca adorno na estátua de Têmis, no STF - Foto Eraldo Peres
Em 2009, um dos grandes magistrados deste país, Alexandre Bizzotto (GO), escreveu o texto abaixo sobre a “inversão ideológica do discurso garantista”.
A semana passada, mes 04/11, outro grande magistrado deste país, Marcelo Semer (RJ), escreveu o texto seguinte: “Decisões do STF põem em dúvida o garantismo penal”.
Assim, um teorizou e o outro demonstrou na prática como se inverte o discurso garantista no Supremo Tribunal Federal. Duas leituras pertinentes e oportunas.
Diz Alexandre Bizzotto:
O sentimento de intolerância é excludente de uma interpretação, na qual, a proteção dos direitos fundamentais seja o desiderato. Neste cenário, é possível vislumbrar a construção da norma de proteção vinculada a uma espécie de inversão ideológica de suas finalidades declaradas.
A inversão ideológica é retratada nos estudos da teoria crítica dos direitos humanos. Excessiva abstração teórica sobre a realidade, a falta de um olhar social e valorativo para os problemas que aparecem, a ausência de efetividade dos direitos humanos, a fragmentação da ideia dos direitos humanos decorrente da complexidade social e a ingênua confiança no ordenamento jurídico, se constituem em fatores que tem o poder de permitir a naturalização da violação concreta dos direitos humanos.
Também é o que ocorre na inversão ideológica do discurso garantista. Através da interpretação de institutos constitucionais, há a subversão das finalidades das normas constitucionais de conteúdo garantidos com a fática ampliação do sistema penal, permitindo-se a abertura de caminhos para facilitar a criminalização secundária. São utilizados fundamentos que deveriam servir para limitar o Estado Penal com o resultado de ampliação da atuação deste.
Com a inversão ideológica, os postulados do Estado Democrático de Direito são manipulados para permitir, sob a proteção da formalidade do discurso garantista, a concretização de violações penais aos direitos fundamentais sob a influência de conceitos gerados pela ideologia da defesa social.
(Bizzotto, Alexandre. Inversão ideológica do discurso garantista: a subversão da finalidade das normais constitucionais de conteúdo limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 205.)
Diz Marcelo Semer:
Decisões do STF põem em dúvida o garantismo penal
Duas decisões recentes do STF arranham a pretendida reputação de corte garantista, que seus ministros vinham amealhando em casos penais de grande repercussão.
Em passado recente, o Supremo foi capaz de considerar inconstitucional a proibição de progressão na antiga Lei dos Crimes Hediondos, estabelecer a liberdade provisória como regra (mesmo após a condenação) e entender possível a aplicação de penas restritivas de direito no tráfico de entorpecente.
Mas vira e mexe, em casos de menor repercussão, pululam decisões incompatíveis com o grau de garantismo que ao tribunal se atribui.
Duas decisões da 1ª Turma chamaram a atenção nesta semana, divulgadas por seu informe oficial.
Na primeira delas, o STF negou a aplicação ao princípio da insignificância por ser o réu é reincidente (confira notícia)
Condenado pela tentativa de um furto de dois DVD’s (que somados valem R$ 34,90), ao réu foi afastada a aplicação do princípio da insignificância (ainda que o valor comporte, como admitiu o relator Marco Aurélio), apenas porque era reincidente – mesmo que a doutrina e o próprio tribunal já tenham reconhecido que o caso escapa da esfera do Direito Penal, pela exclusão da tipicidade.
Mas a tipicidade muda se o agente é reincidente?
E se ele tiver apenas, “maus antecedentes”?
Como construir a garantia do tipo, a principal dentro do direito penal, flexibilizando-a de acordo com cada réu?
Seria apenas uma ponderação político-criminal ou uma inflexão no sentido de mudar o rumo e deixar de reconhecer a bagatela?
Considerando o voto do mais novo ministro, o festejado Luiz Fux, a segunda alternativa pode ser a mais provável: “se nós chegamos aqui para dizer que furtar DVD’s não é crime, nós estamos exatamente tornando antijurídica uma conduta que é notoriamente ilícita”.
Isso tem pouco a ver com o conceito de bagatela. Pode-se aplicar a uma banana também –porque, supõe-se, furtar bananas, também é “notoriamente ilícito”.
Mas nem tudo que é “notoriamente ilícito” está dentro do Direito Penal.
Ou estará a partir de agora?
A segunda decisão é ainda mais preocupante: não aplicação da atenuante da confissão espontânea em caso de prisão em flagrante.
A hipótese é de um crime considerado grave: tráfico de entorpecentes de toneladas de maconha – volume de droga a que se reputou como “monstruosa”.
Como se sabe, a lei já permite a aplicação da pena em consideração ao volume do entorpecente traficado. E isso já fez a pena original ser aplicada bem acima de seu mínimo.
A questão que a Defensoria Pública da União suscitou diz respeito à falta de aplicação da circunstância atenuante obrigatória da confissão espontânea.
Como o patamar é livre, sua aplicação pode até não resultar em grande benefício para o réu. O juiz não é obrigado a baixar a pena ao mínimo –mas sim atenuar a pena em razão da confissão.
A decisão do HC 101.861 afasta essa aplicação, ao que nos foi possível depreender porque, como afirmou o mesmo Luiz Fux: “também entendo que confissão espontânea e o flagrante são contraditio in terminis (contradição em termos), não dá pra conviver. O preso em flagrante não fez favor nenhum à Justiça”.
A lei não disciplina que confissão espontânea se choca com a prisão em flagrante.
Não há qualquer restrição na aplicação de uma circunstância com a outra. E a confissão não é propriamente um “favor” feito pelo acusado.
Compreende-se, seja pelo arrependimento demonstrado, seja pela maior segurança que confere à decisão, que a confissão, que sujeita o réu a uma condenação quase certa, deve ser premiada.
Pode-se discutir o fundamento de justiça da sanção premial e as figuras que analogamente com ela se articulam (como a delação), e uma potencial violação ao direito ao silêncio.
Mas, prevista na lei como circunstância atenuante, poderia ser desprezada porque “a prisão em flagrante” a torna desnecessária?
E, se a prisão em flagrante torna desnecessária a confissão (o ministro Marco Aurélio arremata: ‘ o fato já se mostra de início bem esclarecido pelo flagrante’), o próprio processo seria, então, desnecessário, porque a prisão em flagrante, enfim, lhe é anterior.
Para que julgar, então?
[Para uma compreensão dos limites do propalado "garantismo" do STF, leia também: O STF e a anistia, de Marcio Sotelo Felippe]
Fonte: Blog Sem Juízo, do Juiz Marcelo Semer