Trabalho Análogo à Escravidão

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“(...) Entendimento sem conceitos é sol sem raios”.[1]
Dercides Pires da Silva
AFT, Coordenador de Grupo Móvel.
Desde a advento da Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que modificou o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o conceito e a caracterização do trabalho degradante está a desafiar os operadores do Direito. Com essa modificação, o legislador elevou a nove os tipos penais caracterizadores do trabalho análogo à escravidão: submeter o trabalhador a trabalhos forçados; submeter o trabalhador a jornada exaustiva; sujeitar o trabalhador a condições degradantes de trabalho; restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador; restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com preposto do empregador; cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; manter vigilância ostensiva no local de trabalho, com o fim de retê-lo no local de trabalho; apoderar-se de documentos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; apoderar-se de objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Para compreender o fenômeno anti-social, anti-humano e antijurídico conhecido como trabalho análogo à escravidão é necessário despir-se da ideologia escravocrata dominante que se esconde nos recônditos da alma de interesses mesquinhos que dominam a humanidade desde as  sociedades tribais e que na antigüidade empurravam o trabalho para os escravos, a fim de que os cidadãos pudessem ter uma mente sã num corpo são, e que hoje se manifesta na aceitação tácita que a sociedade outorga a esta abominável prática. Tal aceitação se configura no silêncio das pessoas de bem ante os porões e senzalas que são mantidos a céu aberto nos dias atuais em todas as regiões do Brasil, atingindo todos os quadrantes do nosso País. Pouquíssimas pessoas de bem ficam indignadas com a neo-escravidão e não tomam eficazmente nenhuma medida política, jurídica, econômica ou moral contra ela. Tal inércia equivale a aceitar a escravidão.
Para entender o conceito de trabalho escravo é também necessário compreender que o modo escravo de produção jamais deixou o nosso País, pois os escravos negros, com a chamada Lei “Áurea”, não foram promovidos a cidadãos; somente os seus corpos deixaram de pertencer fisicamente aos escravocratas, mas sua mão-de-obra continuou a servir os antigos senhores tal como sempre servira, e ainda de forma mais vantajosa, uma vez que os antigos senhores podiam pagar – como inda pagam – míseros salários, sem ter nenhuma outra obrigação com o neo-escravo ou com sua família.
Ante tal quadro é fácil compreender a razão pela qual o nosso arcabouço jurídico não coíbe eficazmente as formas de trabalho escravo existentes. Pior do que a estrutura jurídica tem sido a aplicação das leis que já existem, a começar pelos inquéritos que não se fazem, passando pelas ações penais que não são propostas, chegando, enfim, às penas que não se cominam.
Enfim, para enxergar e caracterizar a neo-escravidão, é necessário compreender que conceituar os objetos das ciências sociais é tentar impor limites aos pensamentos: tarefa ingente; é tentar domar o vento ou calar a tempestade: tarefa quixotesca. As ciências sociais são águas em ebulição, não se aquietam, preferem evaporar-se a quedarem inertes nas mãos curiosas dos pesquisadores. Hoje é; amanhã, quem sabe? Ao romper da aurora parece certo; no crepúsculo, erro crasso.
Inobstante os desafios, conscientes de que “o que a beleza é para os olhos e a harmonia para os ouvidos, o conceito é para o entendimento,”[2] opinamos no sentido de que é necessário o debate sobre trabalho análogo à escravidão, por três motivos, pelo menos. Primeiro porque, no campo conceitual, não se consegue aceitar uma idéia que não se compreende; segundo, porque não se aplica um conceito mal compreendido; terceiro, porque os operadores do direito, de todas as classes, detêm consideráveis doses de livre convencimento. Com base neste livre convencimento é fácil se esquivar da aplicação de leis que não se acomodam na ideologia de quem deve promover a justiça, mormente quando a sociedade aceita tacitamente as injustiças que se cometem. O debate é um dos meios que se usa para desmascarar as injustiças.
Entre os tipos penais do artigo149 do Código Penal Brasileiro, dois merecem ser debatidos com urgência: jornada exaustiva, em virtude das mortes ocorridas nos canaviais, e o trabalho degradante por ser a forma mais comum de crimes contra o ser humano praticado no âmbito da relação de trabalho.
O que é trabalho degradante? Como identificar um trabalho degradante? Degradante é sinônimo de humilhante e deriva do verbo degradar; é o ato ou fato que provoca degradação, desonra. Degradação é o ato ou o efeito de degradar. Degradar é privar de graus, títulos, dignidades, de forma desonrante. Degradar é o oposto a graduar, a promover; degradar é despromover. Degradante é o fato ou ato que despromove, que rebaixa, que priva do estatus ou do grau de cidadão; que nega direitos inerentes à cidadania; que despromove o trabalhador tirando-o da condição de cidadão, rebaixando-o a uma condição semelhante à de escravo, embora sem ser de fato um escravo. Portanto, trabalho degradante é aquele cuja relação jurídica não garante ao trabalhador os direitos fundamentais da pessoa humana relacionados à prestação laboral.
O trabalho degradante afronta os direitos humanos laborais consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e abrigados pela Constituição da República Federativa do Brasil, assim como pela Consolidação das Leis do Trabalho e pelas Normas Regulamentadoras, as já populares “NRs”, entre outras normas jurídico-laborais.
Identifica-se um trabalho degradante passando a relação de trabalho pelo crivo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e pelas Normas Regulamentadoras (NR).
 Os artigos XXIII, XXIV e XXV da DUDH diz que toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego; a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas e a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
A CRFB trata do tema em vários dispositivos, entre eles podemos citar os incisos II, III e IV do artigo 1º, que visa garantir a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Os incisos I, III e IV do artigo 3º que coloca entre os objetivos fundamentais da República Brasileira uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza, marginalização e desigualdades, assim como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ainda podemos destacar os seguintes artigos da CRFB que servem para combater a prática do trabalho análogo à escravidão: Art. 4º, II; Art. 5º III; Art. 6º; Art. 7º, XXII, XXVIII; Art. 170, III; Art. 186, III, IV e Art. 193.
Como o trabalho degradante é encontradiço nos ambientes de trabalho inadequados que são disponibilizados aos trabalhadores, é de particular importância, para identificá-lo e caracterizá-lo, a compreensão do capítulo V da CLT, bem como das NR, em particular da Norma Regulamentadora 31, pois o descumprimento dessas normas é que, na prática, se configura a negativa da cidadania que o empregador deve garantir aos seus empregados.
Quanto à NR 31, sua observância deve ser bastante criteriosa pelo aplicador do Direito, pois suas normas, no que toca ao ambiente de trabalho, vieram de forma incompleta, além de se situarem na linha divisória entre a cidadania e a não-cidadania, de forma tal que qualquer descumprimento às mesmas pode colocar o trabalhador em situação degradante, portanto, em trabalho análogo à escravidão.



Fonte: http://www.sinpait.com.br/site/internas.asp?area=9915&id=532